segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A energia espiritual - Bergson


“Os filósofos que especularam sobre o significado da vida e sobre o destino do homem não observaram bem que a própria natureza se deu ao trabalho de informar-nos sobre isso: avisa-nos por meio de um sinal preciso que nossa destinação foi alcançada. Esse sinal é a alegria. Estou falando da alegria, não do prazer. O prazer não passa de um artifício imaginado pela natureza para obter do ser vivo a conservação da vida; não indica a direção em que a vida é lançada. Mas a alegria sempre anuncia que a vida venceu, que ganhou terreno, que conquistou uma vitória: toda grande alegria tem um toque triunfal. Ora, se levarmos em conta essa indicação e seguirmos essa nova linha de fatos, veremos que em toda parte há alegria, há criação: quanto mais rica é a criação, mais profunda é a alegria. A mãe que contempla seu filho alegra-se, porque tem consciência de havê-lo criado, física e moralmente. Acaso o comerciante que desenvolve seus negócios, o fabricante que vê sua indústria prosperar, alegra-se por causa do dinheiro que ganha e da notoriedade que adquire? Evidentemente riqueza e consideração contam muito na satisfação que sente, porém lhe trazem mais prazeres do que alegria; a alegria verdadeira que ele desfruta é ter montado uma empresa que funciona, de ter dado a vida a algo. Pensem na alegrias excepcionais, a do artista que realizou seu pensamento, a do cientista que descobriu ou inventou. Ouvirão dizer que esses homens trabalham pela glória e obtêm suas alegrias mais vivas da admiração que inspiram. Profundo erro! O homem dá importância aos elogios e as honrarias na exata medida em que não está seguro de ter obtido êxito. No fundo da vaidade há modéstia. É para tranquilizar-se que ele busca aprovação, e é para sustentar a vitalidade talvez insuficiente de sua obra que gostaria de cercá-la de calorosa admiração dos homens, como se coloca em estufa uma criança nascida prematuramente. Mas quem estiver seguro, absolutamente seguro de que produziu uma obra viável e duradoura, esse não tem mais o que fazer do elogio e sente-se acima da glória, porque é criador, porque sabe disso e porque a alegria que sente é uma alegria divina. Portanto, se em todos os âmbitos o triunfo da vida é criação, não devemos supor que a vida humana tem sua razão de ser em uma criação que, diferentemente daquela do artista e do cientista, pode prosseguir a todo  momento em todos os homens: a criação de si por si, o engrandecimento da personalidade por um esforço que extrai muito do pouco, alguma coisa do nada e aumenta incessantemente a riqueza que havia no mundo?”


Autor: Henri Bergson (1859-1941)
Livro: A energia espiritual, cap: 2; pag, 22

sábado, 10 de dezembro de 2016

A vida espiritual e a vida intelectual




    Falar de vida espiritual é tratar das relações mais profundas que o ser humano é capaz de estabelecer consigo mesmo, com os outros e com Deus. A espiritualidade, como experiência, pode ser fruída por pessoas ligadas a quaisquer cultos e crenças e, liturgias e ritos à parte, constitui a substância última e o ápice de toda vida orientada para o mistério da transcendência. O mistério, ainda que não possa bem ser explicitado por não caber ou não poder ser dimensionado pela linguagem, pode ser, na concepção de Maritán, fruído em uma experiência que ultrapassa toda e qualquer relatividade do mundo material.
    Muitos místicos respeitáveis, e aqui cabe uma pequena observação, já que o misticismo contemporâneo parece estar configurado mais como um desarrazoado de proposições do que como uma gama de experiências espirituais legítimas, as quais  requerem esforço e disciplina do sujeito que postula a tal coisa, referem que a busca por uma espiritualidade madura e genuína os levou a desenvolver um sentido de unidade com todos os seres e coisas existentes, e que tal integração revela a fruição da felicidade em seu grau mais elevado. Isso contrasta bastante com a experiência sensorial do prazer que, conquanto faça parte de uma vida saudável, não é capaz de oferecer ao ser humano um sentido profundo das coisas, dado o seu caráter fugidio e impermanente. Quando orientamos as nossas vidas ao imediato, ou melhor, quando elaboramos o sentido da vida de modo a suprimir a transcendência, caímos em um relativismo pouco construtivo porque incapaz de fazer desenvolver em nós as nossas capacidades latentes, ou em uma linguagem Tomista, atualizar nossas potências. Ao estar orientado com este sentido de imanência, por uma confusão de vistas, perde-se a oportunidade de vivenciar a experiencialidade mundana de modo a reter somente o que carrega uma certa perenidade, como os valores, os princípios e as lições auferidas desde as experiências. Podemos dizer que a vida espiritual prepara o espírito para o bem viver e também, o que constitui o objeto dessa reflexão, para o caminho que conduz ao conhecimento da estrutura do mundo, que representa a nossa ciência em sentido estrito.
      O ser humano espiritualizado (independente  se possui ou não uma religião) , onde os valores da verdade, da honestidade estão melhor atualizados, é um instrumento muito mais hábil e rico para se abrir ao mundo dos sensíveis e, através do processo que conduz ao conhecimento, aproximar-se da verdade, seja através do uso metódico da razão, na filosofia, seja mediante o recurso da experimentação, na ciência moderna. Os nossos desejos e crenças, no caso específico da ciência, estão a todo momento interferindo e obliterando a obtenção de uma representação fidedigna do real. O que falar então quando o que nos motiva no ato cognitivo não é o conhecimento em si mesmo, mas a validação destes apriorismos. Quando o espírito não possui o sentimento orientado para a  valorização do conhecimento como um fim em si mesmo, que carrega um valor em si, intrínseco,  e, portanto, digno de ser trazido à luz e apreciado, creio que muito do que poderíamos chamar de conhecimento  já não existe mais.
      Somos da opinião que a vida espiritual deve sempre preceder à vida intelectual, pois o uso dos meios disponíveis a expressão do nosso espírito, sejam as artes, a filosofia, a poesia ou a ciência, encontrarão um cognoscente muito mais maduro porque temperado e lapidado pelas experiências da vida. Não existe honestidade intelectual em uma alma que ainda não é honesta, da mesma maneira que não existe expressão de ciência respeitável em uma alma que ainda não consegue apreciar o valor e a beleza que a busca e a apreciação da verdade carregam. A vida intelectual, como uma dimensão da vida em que o conhecimento em sentido estrito é visado, é uma dimensão restrita e complementar da vida espiritual, de onde o cognoscente, através de disciplina e exercício, à semelhança da vida intelectual, entra em contato com os valores que irão lhe subsidiar e fortalecer em toda a caminhada que ao conhecimento  conduz. Espiritualidade e conhecimento são no fundo duas faces necessárias e complementares que tornam o homem mais sábio. Sábio porque já capaz de integrar o que de melhor as experiências da vida podem lhe oferecer: os valores e princípios. Sábio porque capaz de, através destes mesmos valores e princípios, orientar de maneira irretocável a sua conduta ético-metodológica na busca por leis,  relações causais e significados.  Quando o valor que o conhecimento em si mesmo carrega já nos move, quando a honestidade já nos exorna o caráter, então o trabalho espiritual já está sendo frutuoso, restando apenas que nos arrisquemos pelo fastidioso, porém compensador, caminho que nos conduz ao conhecimento. Não é por outra razão que Allan Kardec certa vez enunciou, com relação a complementariedade da vida moral e intelectual, uma normativa que se eternizou nos meios espíritas que, com grande atualidade, dizia: "Espíritas! amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí- vos, eis o segundo."

sábado, 22 de outubro de 2016

O caminho da cruz e a espiritualidade





Ao carregar o madeiro infame, representando o triunfo temporário dos difamadores e dos interesses mundanos em detrimento da justiça, Jesus exemplificou, dentre tantas coisas que podem ser objeto de uma outra reflexão,o destino daqueles que buscam viver alinhados com os mais nobres ideais de justiça e dignidade. As incompreensões, as ridicularizações e os ataques da maldade mal-disfarçada reapareceram ao longo da história não apenas àqueles que posteriormente vivenciaram a mensagem do Evangelho, mas também àqueles outros que se levantaram contra os formalismos de todos os tempos. O formalismo, ou seja, a valorização da forma em detrimento da essência de um princípio ou valor, sempre se prestou a manutenção dos privilégios e dos interesses mundanos em detrimento dos valores espirituais. " A letra mata, mas o espírito vivifica", já dizia o Mestre Nazareno. Onde encontrar, então, o espírito do Evangelho senão na própria experiência de vida de Jesus? 
O calvário sempre representou para mim o triunfo momentâneo da mentira e da injustiça. A condenação, o calvário e a crucificação são momentos distintos mas que podem ser objetos de uma leitura unificada, quando o que os unifica é a vitória temporária dos interesses materiais daquele povo, naquele tempo, sobre as perenes lições reveladas pelo Mestre de Nazaré. E o tempo, como um ótimo juiz, se encarregou de estabelecer a solidez dos valores anteriormente contestados, que serviriam como base para a construção da nossa estimada civilização ocidental. Aí esta parte de nossas raízes, os nossos alicerces e porque não dizer assim, a nossa mais profunda identidade. Mesmo para aqueles que negam isso, tendo em vista os desdobramentos seculares, principalmente a partir da modernidade, já estão embebidos destes valores perenes pois, os modernos,  ao traduzir os valores cristãos para um contexto secular,  não abriram mão  da essência dos mesmos, conquanto eles tenham ficado um pouco desordenados pela falta da base contextual que lhes dimensionava. O que quero dizer é que sem a noção da transcendência, os valores podem ser interpretados fora da sua verdadeira escala: o prazer fugidio pode se transformar em felicidade, a verdade ou a busca dela não raro se transforma em convencionalismo a atender o interesse de grupos restritos, sejam eles políticos e/ou econômicos;  a estética pode servir apenas para refletir e ampliar os modismos de um tempo e não mais embelezar o mundo através de valores ontológicos ou espirituais; e a virtude consistir mais em parecer ou desfrutar de uma boa imagem pública do que viver intensamente e de maneira honesta aquilo que torna o homem realmente virtuoso.
Jesus, sem ser um revolucionário no sentido vulgar do termo, tratou de restabelecer as coisas em sua verdadeira dimensão e identidade. Mesmo quando o triunfo e os aplausos estavam voltados para o avesso do que vivera, nunca se deixou levar pelo espírito do tempo, embora tenha deixado claro que não viera para romper a antiga lei judaica, mas lhe dar prosseguimento. O "espírito do tempo" reflete a capacidade que os homens de um determinada espacialidade- temporal tem de perscrutar ou aproximar-se dos valores perenes, àqueles que estão inscritos na própria estrutura da realidade. Embora os diferentes costumes e as diferentes formas de expressão desses valores derivem da cultura, alguns elementos comuns, estruturais, se repetem e revelam a objetividade dos mesmos. Justiça, ciência, amor, amizade, conquanto adquiram formas peculiares devido à diversidade cultural, preservam ontologicamente seu conteúdo essencial, a ser descoberto pelos homens ao longo do tempo histórico.  O princípio segundo o qual o ser se diz de muitas maneiras, embora preserve uma unidade focal, conforme asseverou Aristóteles, parece poder ser aplicado aqui. O ser das coisas, conforme referido, adquire diversos formatos a depender da cultura na qual se está a  analisar, embora preserve uma estrutura básica que permite aos homens a identificação dos diversos seres. O ser da justiça, o ser do amor, o ser da amizade podem ser reconhecidos inter-culturalmente justamente porque apresentam elementos que podem ser identificados por todos os homens com capacidade de sentir e inteligir.
A reflexão parece fugir um pouco do objetivo inicial, mas alinha-se aos propósitos originais quando buscamos refletir sobre o modo como nos inserimos no espírito deste tempo. Estamos sendo verdadeiramente cristãos, amando, respeitando e sendo indulgentes com as faltas alheias e firmes em nossa própria conduta e propósito? Ou preferimos o aspecto formal do cristianismo, nos desapegando da essência dos ensinos evangélicos? ou ainda, se nos descristianizamos de tal modo que nos reconhecemos perfeitamente vivendo em um mundo cada vez mais hostil aos valores cristãos? Estamos presos ao espírito do tempo, e portanto na imanência, ou estamos no caminho que conduz à transcendência, aos valores perenes? 
Voltemo-nos, portanto, ao caminho da cruz, que nos ensina que mais vale o peso da contrariedade momentânea, para a vitória futura, do que a vitória momentânea que muitas vezes significa derrota ou estagnação espiritual. O caminho da cruz revela, em um só ato, as agruras e as recompensas do caminho: a primeira sempre momentânea, e a segunda substanciosa, de longa duração e radicada em nossas melhores esperanças. A esperança não sendo considerada como qualquer exterioridade que possa vir ser conquistada, já que o que está em jogo, no caminho da cruz, é a conquista de nós mesmos, hoje e pela eternidade.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Metafísica Aristotélica: a ciência do Ser

      Todos os homens, segundo o estagirita, têm uma inclinação ao conhecimento, e isto se deve à sua própria natureza. Ele demonstra essa afirmação dizendo que existe por parte dos homens uma valorização das sensações, em que pese sua utilidade prática ou não. São, portanto, estimadas em si mesmas, como a sensação da visão, por exemplo.      A destreza [1] pode ser entendida como essa inclinação natural ao saber que, se bem usada, ou seja, se tem como meta o conhecimento em si mesmo, é digna de elogio; entretanto, se mal empregada degenera em esperteza. O que muda é o status de dignidade que ela adquire conforme a maneira como é utilizada pelos homens. O que torna, portanto, essa capacidade digna ou não são os fins que se busca atingir com a mesma.
    A viagem que conduz ao conhecimento começa através das sensações, que decorrem do contato humano com a realidade exterior. Os animais, por natureza, nascem dotados da capacidade de sentir, e a partir das sensações que experimentam, em alguns se forma a memória e em outros não. Os animais onde a memória surge, diz o filósofo, são mais perspicazes do aqueles em que a memória não se engendra.
    Os homens tem uma peculiar característica com relação aos outros animais inferiores, que é a capacidade de, através da memória, que compreende as diversas recordações dos objetos e fatos ocorridos no mundo, formarem a experiência. A experiência nada mais é do que o conhecimento das coisas particulares. Os objetos do mundo físico, os outros homens, são compreendidos pelo experiente como instâncias pertencentes a certos tipos, como instâncias de universais.
    A prudência [3] só se desenvolve no Ser cognoscente, portanto, quando, a partir da passagem do tempo, e com o auxílio das sensações e da memória, ele começa a produzir um tipo menos preciso de conhecimento, a partir da repetição e do contato com os objetos e fatos do mundo exterior. Cabe ressaltar que este tipo de saber ainda não representa o ápice do conhecimento e nem satisfaz os propósitos de Aristóteles no que tange à ciência buscada.
     O saber de fato, prossegue o filósofo, pertence mais a técnica do que a experiência, pois somente a ciência e a técnica podem favorecer o homem com o conhecimento das explicações profundas ou causas. A pergunta que norteou todo o processo do conhecimento em Aristóteles, “ o que é isto?” só pode ser respondida de modo satisfatório nesta etapa do processo de conhecer. É nesta etapa que se situam os sábios e o seu conhecimento dos universais. A sabedoria [2] é, deste modo, a ciência dos universais.  Ela é possuída pelos sábios, que se distinguem dos experientes por serem conhecedores de princípios e causas que representam o ápice da jornada do conhecer, compreendida em quatro momentos( sensação- memória- experiência- ciência ou técnica), no qual somente o último nível traduz  o conhecimento buscado por Aristóteles, conhecimento em sentido estrito.

Metafísica aristotélica- o princípio de não-contradição

        Aristóteles assevera que há uma ciência que, distintamente das ciências particulares, investiga o ente enquanto ente, ou seja, investiga as propriedades  que fazem com que uma substância seja o que é. Enquanto as ciências particulares como a matemática e a física já partem de axiomas universais, tomados a priori, a ciência do Ser, ou ciência buscada de Aristóteles, investiga quais seriam esses princípios primeiros, estando amparada em um caminho epistemológico que começa com as sensações, passa pela memória, através da qual se adquire o conhecimento em sentido fraco, e tem seu ponto alto com a ciência, quando as causas e explicações, caracterizadas pelo máximo grau de generalização, são conhecidas, ou, dito de outra maneira, quando os universais contidos nos particulares se revelam ao sábio.
      Compete ao filósofo, portanto, e não aos estudiosos da natureza, estabelecer os princípios fundamentais sobre os quais a ciência do Ser deve se fundamentar. O estagirita chega ao conhecimento daquele que é o primeiro princípio, o mais firme de todos, o princípio de não contradição, pelo qual é impossível que um mesmo atributo pertença e não pertença a um mesmo subjacente ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Segundo o filósofo, portanto, é impossível que os contrários pertençam a mesma coisa  ao mesmo tempo, de modo que sobre esse princípio é impossível se enganar, visto que as pessoas se enganam sobre aquilo que desconhecem, e ademais, esse princípio está fundamentado na própria estrutura da realidade, de maneira que ele não se qualifica como uma mera hipótese.
        Sendo o princípio de não contradição  o mais conhecido, sobre o qual é impossível se enganar e necessário, cabe a Aristóteles a defesa do mesmo, conforme o faz no capítulo 4 da metafísica, utilizando a prova por retorsão. Aqui cabe uma pequena distinção feita pelo filósofo sobre a demonstração e a demonstração refutativa. Segundo assevera, ao demonstrar, o interlocutor já postula o princípio a ser defendido, enquanto que em uma prova por refutação, não haveria demonstração nesse sentido considerada. Segundo Lear, a estratégia que Aristóteles adota não é a de convencer alguma pessoa que não acredita no princípio de não contradição, e sim mostrar que mesmo negando o princípio ou não acreditando nele, dele se utiliza, de maneira necessária, quando busca compreender a realidade.
        O estagirita não pretende exigir que o seu adversário afirme que algo é ou não é, mas exige que o interlocutor apenas queira dizer algo com sentido para si mesmo e para outrem.O responsável pela demonstração é o próprio adversário que, ao afirmar que o princípio de não contradição não existe, postula uma declaração com sentido e, portanto, acaba por demonstrar o princípio. Algo não pode ser e não -ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, conforme sustenta o princípio. Portanto, se o princípio de não contradição é falso, tem um significado, e não é verdadeiro ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Logo, ao recusar o princípio, postulando uma declaração, o adversário acaba ele mesmo por demonstrar, por refutação, o princípio.
       Mesmo que não acredite no princípio, ao enunciar algo com pretensão de verdade, o interlocutor acaba por acionar o mesmo. O princípio de não contradição tem, deste modo, uma forma ontológica, ou seja, está inscrito na própria estrutura do real;e uma forma psicológica, conforme referido, já que se algo existe na estrutura da realidade, é impossível conceber a realidade sem fazer referência a este algo.  É impossível conceber que um atributo pertença e não pertença ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto a um ente. O branco e o não branco não coexistem ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto em um mesmo subjacente, o quente e o não quente, o ser e o não ser, e assim por diante. O princípio de não contradição é o mais incontestável, portanto, e fundamento para a ciência do Ser na medida em que, segundo Lear, a própria possibilidade da ação, do pensamento e de uma atitude discursiva dependem da adesão, ainda que inconsciente, à sua verdade.
  
        Referências:
 
 ARISTÓTELES. Metafísica gamma, capítulo 3-4, Tradução Lucas Angioni (não sei o ano, hehe).
 
 LEAR, Jonathan. Aristóteles: O desejo de entender, 2008.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Os desertos da vida



"Há ocasiões em que a predominância da vulgaridade e do ressentimento golpeia as expressões da gentileza e da dignidade, parecendo conduzir tudo e todos ao caos... nesse deserto, porém, numa caminhada silenciosa e demorada, surgem os tesouros da reflexão, do entendimento dos valores espirituais, da necessidade de ser pleno."  Joana de Ângelis

Os muitos desertos que atravessamos imprimem suas profundas marcas em nossas vidas: o deserto da incompreensão com que somos analisados e julgados por outrem; o deserto do desrespeito e do não acolhimento que enfrentamos em muitos momentos da caminhada; o deserto da falta de possibilidades materiais dignas; o deserto da ignorância, devido à falta de possibilidades de acesso a cultura dignificante, entre tantos outros elementos com capacidade de supostamente limitar a nossa possibilidade de crescimento, o nosso vir- a -ser. O que parece comum a cada contexto de privação é, como em toda realidade contextual, o seu caráter eminentemente externo que, se acaba por afetar e deixar suas marcas no Ser, não tem o poder de alterar de maneira profunda o que se é.
 Embora as reflexões acerca da natureza humana tenham arrefecido e mesmo desaparecido do debate contemporâneo, sobretudo em contextos leigos, dado que a preocupação principal dos intelectuais  é com a macro realidade histórico-social e de como essa exterioridade criada é capaz de formar a consciência dos indivíduos, o resgate da possibilidade de um Ser cognoscente, com alguma autonomia,  não sendo apenas  um receptáculo de padrões externos (um quase autômato)  é trazida ao debate  por alguns sociólogos de linhagem interpretativa que, sem adentrar na intrincada questão metafísica correspondente, acenam, de maneira reduzida e científica, com alguma possibilidade de agência livre diante da impositiva e coagente realidade externa. A visão de que somos seres cognoscentes não apenas representa, a meu ver, uma aproximação maior da realidade, mas aponta para uma ética da responsabilidade e dos deveres individuais, tão cara nos dias atuais e sem a qual não será possível construir uma sociedade formada por indivíduos maduros e que assumam os resultados inexoráveis de suas próprias ações. Em uma ambiência religiosa, o debate assume outra configuração, de modo que  o Ser, em sua formulação metafísica, é um   elemento crucial na reflexão, e sobre ele uma ética profunda e estruturante, de caráter transcendental, o impele a desenvolver as potencialidades ínsitas de sua natureza  perfectível, e mesmo os ambientes desérticos o favorecem nesse sentido.
 Ter consciência de sua perfectibilidade e das potencialidades que sustentam e promovem, com o auxílio do tempo e dos desertos, essa mesma perfectibilidade, favorece  o viajante. É como se detivesse  um instrumento a lhe indicar o caminho bem como a melhor maneira de caminhar. Os desertos da vida, conforme a alegoria da mensagem, representam os contextos de carência e privação pelos quais devemos atravessar. A aridez, o solo infértil e as dificuldades da estrada não são motivos para o abandono da caminhada nem para os reclames tão comuns quanto compreensíveis. Se bem acolhida, a solidão existencial que o deserto oferece pode alterar o homem de tal modo que o conduza à reflexão. E esta, se bem orientada,  pode favorecer o autoconhecimento e o encontro com a própria dignidade, que não figura nesse ambiente hostil, mas no oásis da própria alma. É da interioridade do Ser que emana a força para vencer as contingências necessárias e para não se deixar influenciar em demasia pelos desertos da vida humana, percorrendo-os a passos firmes. A dignidade humana não é um adorno que conquistamos externamente no jogo das aparências, mas uma força interior que irrompe e nos torna tudo aquilo que podemos ser nesta vida: fortes diante dos infortúnios, conhecedores de nós mesmos e, com efeito, senhores do nosso  próprio destino. Estar conosco mesmo, centrados no valor de nossa própria dignidade intrínseca,  são  condições  necessárias para a travessia e bom proveito da experiência do deserto, pois a solidão experimentada nos desertos exteriores da vida não são nada diante  daquela solidão que experimentamos quando trazemos o deserto para dentro de nós mesmos, ao nos afastarmos de nossa realidade profunda, de nossa dignidade e dos nossos mais caros valores espirituais.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A experiência da vida e os valores intrínsecos e perenes









"Tudo passa e tudo se renova na terra, mas o que vem do céu permanecerá." Chico Xavier







De maneira geral, a relação entre esses termos não aparece de maneira sistemática no espiritismo, ou seja, não há uma preocupação em apresentar essas noções, bem como a interdependência entre elas, a partir de uma teorização sistemática. Por serem noções muito complexas, a preocupação central de Allan Kardec e dos espíritos que trabalharam na codificação é apresentar as ideias de maneira mais livre possível; pois se o pensamento sistemático e o conceito fechado tem o mérito de tornar o mundo cognoscível, não raro, o seu abuso pode favorecer simplificações e, portanto, não  captar as contradições e os movimentos da realidade. A casa da palavra, embora seja o veículo  por excelência da  comunicação entre os homens, pode se tornar um óbice para o entendimento da realidade, sobretudo daquelas realidades que podem ser experimentadas e compreendidas de maneira radical através de uma vivência espiritual.
É no mundo ordinário, em nossa vida de relação, que experimentamos um conjunto multifacetado de experiências, cada qual compreendendo um valor intrínseco distinto, que por sua vez, aciona ou atualiza potencialidades da alma igualmente distintas. Os sofrimentos no mundo, embora não devam ser procurados voluntariamente pelos homens, mas antes evitados, podem cumprir um importante papel, por exemplo, na sensibilização humana, na apreensão de valores como a justiça, o bem e o amor, que, em um contexto experiencial de carência, podem ser revalorizados. Ao passar por essas experiências, a consciência superficial ou egoica, não raro, não possui as ferramentas necessárias para divisar e aprender as lições importantes que se escondem por detrás de toda a experiência dolorosa. Muitos de nós já experimentamos o desamor, a injustiça e a incompreensão. E  é justamente essas misérias que nos tornam mais cônscios, mas sobretudo mais sensíveis (e isso é fundamental) sobre a necessidade de incorporarmos o amor,a justiça e a compreensão à nossa própria conduta. Alguma coisa fica desalinhada em uma relação que não tem como base esses valores essenciais, e é pela falta deles que o sofrimento se desenvolve. O sofrimento se apresenta, portanto, quando a realidade desaparece ou fenece. De algum modo, a natureza encontrou meios de dizer para o homem que a não observância de valores essenciais provoca a dor, a contrariedade e o desconcerto. Se não há nenhuma base sólida que justifique a aceitação de valores morais fundamentais, se não há de fato uma objetividade para os valores, porque a sua não observância  impacta- de maneira objetiva-  a realidade dos homens?
Se o valor intrínseco à experiência é aprendido e sentido, algo em nós não continua como antes: há um movimento em nossa alma que nos leva a tomar posse dessa nova aquisição. O mundo ganha novos contornos, nossas lentes se ampliam e nossas relações passam a ter as cores do que  existe de eterno no mundo e que, por experimentação, acaba por se eternizar em nós.
O perene está presente na transitoriedade experiencial, não como um prazer que flui ou um sentido que se aguça, mas como uma lição que se sobrepõe a fugacidade das coisas experimentadas. Somente um valor, de fato, é capaz de fazer o espírito se expandir e sair de sua temporária condição de ignorância, atualizar as sua potencialidades e, com isso, conquistar o quinhão de que todos somos herdeiros. E essa herança divina fala  não tanto do prazer que se esgota na fugacidade do imediato, mas de uma felicidade encontrada na possibilidade de ser pleno a partir da descoberta e vivência dos valores permanentes, conforme elucidou o nobre Chico Xavier,

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Cuidar do corpo e do espírito- O evangelho segundo o espiritismo



Essa postagem é a transcrição de uma mensagem do capitulo XVII  de O evangelho segundo o espiritismo, intitulada "Cuidar do corpo e do espírito".

Consistirá na maceração do corpo a perfeição moral? Para resolver essa questão, apoiar-me-ei em princípios elementares e começarei por demonstrar a necessidade de cuidar-se do corpo que, segundo as alternativas de saúde e de enfermidade, influi de maneira muito importante sobre a alma, que cumpre se considere cativa da carne. Para que essa prisioneira viva, se expanda e chegue mesmo a conceber as ilusões da liberdade, tem o corpo de estar são, disposto, forte. Façamos uma comparação: Eis se acham ambos em perfeito estado; que devem fazer para manter o equilíbrio entre as suas aptidões e as suas necessidades tão diferentes? Inevitável parece a luta entre os dois e difícil achar-se o segredo de como chegarem a equilíbrio.
Dois sistemas se defrontam: o dos ascetas, que tem por base o aniquilamento do corpo, e o dos materialistas, que se baseia no rebaixamento da alma. Duas violências quase tão insensatas uma quanto a outra. Ao lado desses dois grandes partidos, formiga a numerosa tribo dos indiferentes que, sem convicção e sem paixão, são mornos no amar e econômicos no gozar. Onde, então, a sabedoria? Onde, então, a ciência de viver? em parte alguma; e o grande problema ficaria sem solução, se o espiritismo não viesse em auxílio dos pesquisadores, demonstrando-lhes as relações que existem entre o corpo e a alma e dizendo-lhes que, por se acharem em dependência mútua, importa cuidar de ambos... Sereis, porventura, mais perfeitos se, martirizando o corpo, não vos tornardes menos egoístas, nem menos orgulhosos e mais caritativos para com o vosso próximo: Não, a perfeição não está nisso: está toda nas reformas por que fizerdes passar o vosso espírito. Dobrai-o, submetei-o, humilhai-o, mortificai-o: esse o meio de o tornardes dócil à vontade de Deus e o único de alcançardes a perfeição (Espírito protetor, Paris, 1863).

sábado, 6 de agosto de 2016

Sobre a tolerância




Em um primeiro momento, essa palavra pode causar uma certa aversão às pessoas de consciência reta, pois ao longo do tempo foi ganhando uma conotação  de "aguentar" o outro em sua diferença física e consciencial; entretanto, mais do que nunca, a tolerância, em seu sentido profundo, é, e será, um valor muito importante para o estabelecimento de relações harmônicas entre as pessoas.
A tolerância pode ser entendida como um exercício espiritual dos mais importantes: buscar compreender as razões e os valores do outro, sem ter a necessidade de incorporar esses mesmos valores ao seu próprio modo de ser e de enxergar a vida é, no meu modo de entender, uma definição satisfatória para essa "prática".
A liberdade de consciência que ao longo dos séculos foi se construindo no ocidente é algo admirável e deve ser preservada de qualquer tipo de imposição autoritária, seja ela ideológica, seja ela religiosa. Em um ambiente saudável, onde circulam as boas ideias, divergentes, e que fomentam um debate intelectual maduro, chega-se a soluções moderadas e com um maior grau de razoabilidade do que em ambientes sociais onde há cerceamento e coação intelectual. Muitas vezes encontramos esses ambientes obscuros nas escolas, faculdades e até mesmo nos espaços dedicados aos estudos religiosos. Tudo isso deriva da não aceitação do outro, de sua livre consciência e de sua capacidade cognoscitiva própria que, de maneira igualmente singular, faculta diversos entendimentos sobre a realidade. Talvez a pretensão de esgotar a realidade a partir de uma ou duas visões correntes, os interesses políticos e os interesses pela manutenção de hierarquias de poder podem contribuir para que essa atitude de não reconhecimento da autonomia do outro- e aqui estou me referindo a autonomia intelectual que é, de todas as possíveis, a mais profunda, pois tem a capacidade de revelar o Ser- seja levada a termo com frequência.
O ser tolerante não é um falar sobre tolerância. Em um nível puramente mental qualquer um de nós é capaz de fornecer um entendimento razoável sobre a tolerância enquanto conceito; contudo, vivê-la de uma maneira profunda implica um grande desafio, que no fim das contas, consiste em respeitar a consciência do próximo, um dos princípios basilares do Evangelho de Jesus.
Jesus exemplificou a tolerância em seu tempo andando com pessoas das mais diversas: desde as que eram consideradas de má vida, até aquelas outras que desfrutavam do respeito de seus pares, geralmente por estarem bem posicionadas na hierarquia social. Em íntima ligação com Deus e, portanto, conhecedor de toda a verdade, não julgou a quem quer que fosse, apenas acolheu integralmente a todos. Não consentindo com os erros, mas permanecendo compreensivo diante das fraquezas humanas, deixou à posteridade um legado de respeito pela dignidade humana e de encorajamento para o enfrentamento dos árduos trabalhos espirituais futuros. O exemplo de Jesus revela uma maneira (que é o nosso fim) de enxergar a realidade: reconhecer  o direito do outro de ter as suas próprias experiências, e de formar, deste modo, sua própria consciência. Disso não se segue que um cristão tenha necessariamente que adotar uma atitude relativista, ou que tenha que viver o mundo com valores estranhos aos seus, mas que tenha uma postura fundamentada no respeito à dignidade, conforme referiu-se, e no livre arbítrio, que é um dos valores fundantes da nossa civilização. Claro, quando a nossa pretensa "liberdade" não desrespeite a liberdade dos outros e mesmo a dignidade e sacralidade da vida humana, que vem sendo bastante atacada nos dias de hoje por ideologias que carregam um materialismo destrutivo.
Por fim, talvez a profunda amorosidade de Jesus, com as pessoas que lhe vinham de todas as partes, se devesse pela maneira como  enxergava as pessoas para além da forma com que se apresentavam a ele. O véu da nossa precária condição atual esconde a nossa sacralidade intrínseca, o nosso pertencimento a uma ordem transcendental, a uma irmandade que foi planejada por Deus desde a criação, e que Jesus tinha acesso devido a sua alta condição espiritual. A palavra tolerância vem sendo ventilada nos dias atuais por indivíduos notadamente intolerantes. A tolerância não é um arrazoado bonito que esteja disposto em páginas livrescas, mas é uma atitude existencial que tem o dom de acalmar e iluminar os ambientes onde os valores são enunciados mas não são vividos, e que são facilmente percebidos pelas pessoas que estejam dispostas a vivê-los. Ver o outro em sua realidade profunda, como Jesus enxergava, é a única maneira de vivermos em um mundo tão pluralista sob todos os aspectos, dando aos outros o direito de ser como lhes apraz e a nós buscando ser como devemos, cada vez mais cristãos, conforme enunciou certa vez Chico Xavier.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A candeia sob o alqueire



"Não há ninguém que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um vaso ou a coloque sob uma cama; mas a põe sobre o candeeeiro, a fim de que aqueles que entrem vejam a luz; porque não há nada de secreto que não deva ser descoberto, nem nada de oculto que não deva ser conhecido e manifestar-se publicamente."

A luz a que a passagem bíblica se refere, também encontrada em o Evangelho Segundo o Espiritismo. é a doutrina de Jesus em sua máxima pureza. As reflexões posteriores dos espíritos superiores falam que, em um determinado grau de desenvolvimento intelecto-moral, os povos de maneira geral e os indivíduos em particular já tem condições suficientes para assimilar o conteúdo de novas revelações. Revelações essas que transcendem os meritórios esforços dos espíritos de ciência que, quando em uma busca sincera pela verdade, contribuem a seu modo com o progresso geral.
Uma forma de dar vida aos valores que representam a luz que fora revelada, colocando-a sobre o candeeiro, para utilizarmos a alegoria referida na passagem do Evangelho, é através da nossa própria vivência. Como cristãos temos uma responsabilidade muito grande com este mundo e para conosco mesmo, que é a de fazer reviver a maneira e os atos de Jesus em nossas vidas. Por mais distante que isso possa nos parecer em um primeiro momento, dada as nossas imensas limitações, devemos buscar aos poucos incorporar esses valores à nossa conduta, de modo que tornemo-nos habilitados para anunciar o Evangelho, não com palavras, nos locais onde se realizam esgrimas intelectuais, mas nos lugares onde a nossa pequena quota de amor possa se expandir, levando, com isso, esperança onde antes não havia. Encontrar e desenvolver Jesus em nós e anunciá-lo através da expansão em direção aos outros de nossas pequenas virtudes, eis a tarefa que nos cabe realizar.

sábado, 23 de julho de 2016

A vocação



Esta é uma das citações que mais aprecio quando o tema é vocação. Encontra-se no livro- "A consciência de si", do filósofo Francês Louis Lavelle, aí vai:


“Toda a infelicidade dos homens vem de que não existe nada mais difícil, para cada um deles, do que discernir seu próprio gênio. Quase todos o desconhecem, desconfiam dele, são ingratos para com ele. Empenham-se até em destruí-lo para colocar em seu lugar uma personalidade de empréstimo que lhes parece mais espetacular. Todo o segredo da potência e da alegria consiste em descobrir-se e em ser fiel a si mesmo, tanto nas menores coisas como nas maiores. Até na santidade, trata-se de realizar-se. Quem desempenha melhor o papel que é o seu, e que não pode ser desempenhado por nenhum outro, é também o mais afinado com a ordem universal: ninguém pode ser mais forte nem mais feliz. Toda a nossa responsabilidade recai, portanto, sobre o uso das potências que nos pertencem exclusivamente. Podemos deixar que se percam ou fazê-las frutificar. Assim, nossa vocação só pode ser mantida se permanecemos perpetuamente em seu nível, se nos mostramos sempre dignos dela. O papel de nossa vontade é mais modesto do que imaginamos; é apenas o de servir a nosso gênio, o de destruir diante dele os obstáculos que o freiam, o de fornecer-lhe incessantemente um novo alimento, e não o de modificar seu andamento natural nem o se imprimir-lhe uma direção escolhida por ela.
Existe em todo homem um pensamento secreto que ele deve ter a probidade e a coragem de expor à luz do dia. Não deve preferir a ele uma opinião alheia que lhe pareça mais elevada, mas que, incapaz de se alimentar em seu próprio solo, nele não crescerá. Não podemos esperar possuir outras riquezas além das que já trazemos em nós. Basta explorá-las, em vez de negligenciá-las. Mas elas são familiares demais para que nos pareçam preciosas, e corremos atrás de outros bens que brilham mais e cuja posse nos é recusada. Mesmo que pudéssemos alcançá-los, não deixariam em nossas mãos nada além de sua sombra.
No entanto, a confiança que se tem na própria vocação comporta, por sua vez, perigos. Minha vocação não está feita de antemão; cabe a mim fazê-la; preciso saber extrair de todos os possíveis que estão em mim o possível que devo ser. Também não devo confundir minha vocação com minhas preferências, embora minha preferência mais profunda deva afinar-se com minha vocação, nem o chamado de meu destino com todas as sugestões do momento, embora o momento sempre me proporcione a ocasião à qual devo responder. A sabedoria consiste em reconhecer a missão que só eu sou capaz de cumprir: pôr em seu lugar algum desígnio tomado de empréstimo é traí-la, assim como é traí-la alçar-me a pensamentos mais vastos que os que posso portar.
Ocorre com as vocações individuais, na vida da humanidade, o mesmo que ocorre com as diferentes faculdades, na vida da consciência. Cada faculdade - a inteligência, a sensibilidade ou o querer - deve exercer-se segundo sua lei própria, em sua hora e nas circunstâncias que convêm, caso contrário a consciência não conseguirá realizar sua harmonia nem sua unidade; mas, quando ela se exerce como se deve, é a alma inteira que age nela. Da mesma forma, o destino da humanidade inteira está presente na vocação de cada indivíduo, contanto que ele a aceite e a ame.”




sexta-feira, 22 de julho de 2016

A humildade


"A humildade é uma virtude bem esquecida entre vós; os grandes exemplos que vos foram dados são bem pouco seguidos e, todavia, sem a humildade, podeis ser caridosos para com o vosso próximo? oh! não, porque esse sentimento nivela os homens; diz-lhes que são irmãos, que devem se entreajudarem e os conduz ao bem. Sem a  humildade vos adornais de virtudes que não tendes, como se trouxésseis um vestuário para esconder as deformidades de vosso corpo. Recordai Aquele que nos salva; recordai sua humildade que o fez tão grande,e  o colocou acima de todos os profetas."

Esse pequeno trecho de uma das obras básicas da doutrina espírita, o evangelho segundo o espiritismo, propõe uma interessante reflexão a respeito dessa que é a virtude do realismo: a humildade ou a busca dela nos coloca em nossa real posição no mundo dos homens, conferindo-nos uma posição de igualdade diante dos semelhantes e de entrega a vontade de Deus.
Uma vivência espiritual (ou viver para o espírito) possibilita o encontro com partes de nós mesmos antes desconhecidas. As máscaras com que nos adornamos no mundo tendem a ceder em face do conhecimento de ser quem se é: em geral, e o que nos unifica enquanto seres humanos,  pessoas frágeis do ponto de vista moral, com inúmeros defeitos e padrões comportamentais equivocados, mas com infinitas possibilidades de crescimento, em um eterno vir-a-ser, onde nossas potencialidades são constantemente atualizadas pelo trabalho das experiências e do tempo.
O realismo e a auto-aceitação de nossa  condição, nem sempre tão elevada como supúnhamos, é um primeiro e vigoroso passo para o restante da caminhada espiritual. A consciência desperta e que busca se conhecer é, portanto, uma grande aliada em todo esse processo, de modo que ela pode ter a ciência do caminho a ser percorrido nesta vida, que é apresentado pelos apontamentos do eu profundo ou si mesmo: o que, de acordo com a teologia católica, possibilita ao ser o conhecimento de sua própria vocação.
Conhecer as nossas fraquezas, por fim, permite-nos desenvolver uma maior compaixão pelas fraquezas alheias, o que sem nenhuma dúvida nos aproxima do exemplo de Jesus e das lições perenes do seu Evangelho. Longe de ser uma fraqueza, a humildade é a prova mais evidente de que a alma se despojou de sua inconsciência ( no sentido de não ter ciência) e superficialidade, e já consegue tornar manifesta em grande medida a sua força interior que, afinal, é a sua verdadeira natureza. Tornar-se o que se é, em essência, é a  vocação pela qual somos todos chamados por Deus, e isso conseguiremos mediante autoconhecimento, trabalho e partilha.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Um lugar para refletir

Este é um espaço estrito para a reflexão: aqui colocaremos na casa da palavra as experiências vividas e que de algum modo acreditamos que merecem  a nossa atenção. A intuição básica- e nem tanto original assim- é a de que cada experiência humana, transitória e fugidia por sua própria natureza, revela um mundo de valores e de conhecimentos que, ao suscitar e  desenvolver nossas potencialidades intrínsecas, se conjuga a um universo de perenidade e de estruturação. A experiência humana no mundo e a possibilidade do encontro entre os homens, portanto, falam muito mais de um revelar de valores situados em um nível ontológico ou primeiro da realidade do que propriamente de uma construção mais ou menos arbitrária e próxima da fugacidade que advém da historicidade.
Uma viagem investigativa em busca de uma noção madura sobre espiritualidade depende em grande medida da própria vivência espiritual do viajor. O instrumento primeiro e mais importante em toda jornada espiritual somos nós mesmos. Importante se faz que antes de empreender qualquer busca intelectual, o viajante tenha o cuidado adequado consigo mesmo através da busca do auto-conhecimento. O auto-conhecimento nos permite entrar em contato com uma realidade transcendente e nem um pouco sujeita às vicissitudes e as constantes mudanças ocorridas na fugacidade do espaço-tempo. Essa realidade, em última análise, somos nós mesmos para além da aparência. Lá estão em potência, à espera do desabrochar conferido pelas experiências humanas, todos os valores, potencialidades e habilidades que algum dia irão se presentificar e nos acompanhar: é o nosso vir-a-ser.
A espiritualidade cristã, alguma tradições orientais e conceitos da tradição idealista da filosofia serão expostos aqui, não com o propósito de apresentar essas filosofias de modo sistemático, mas através delas e em articulação com as experiências de vida mais prosaicas, refletir sobre o lugar e a importância da espiritualidade nos dias de hoje, tanto no que se refere à  busca por um sentido perene em face das transformações aceleradas do mundo, quanto pela importância dos valores perenes para a formulação, digamos assim, de uma ciência do bem viver.