sábado, 22 de outubro de 2016

O caminho da cruz e a espiritualidade





Ao carregar o madeiro infame, representando o triunfo temporário dos difamadores e dos interesses mundanos em detrimento da justiça, Jesus exemplificou, dentre tantas coisas que podem ser objeto de uma outra reflexão,o destino daqueles que buscam viver alinhados com os mais nobres ideais de justiça e dignidade. As incompreensões, as ridicularizações e os ataques da maldade mal-disfarçada reapareceram ao longo da história não apenas àqueles que posteriormente vivenciaram a mensagem do Evangelho, mas também àqueles outros que se levantaram contra os formalismos de todos os tempos. O formalismo, ou seja, a valorização da forma em detrimento da essência de um princípio ou valor, sempre se prestou a manutenção dos privilégios e dos interesses mundanos em detrimento dos valores espirituais. " A letra mata, mas o espírito vivifica", já dizia o Mestre Nazareno. Onde encontrar, então, o espírito do Evangelho senão na própria experiência de vida de Jesus? 
O calvário sempre representou para mim o triunfo momentâneo da mentira e da injustiça. A condenação, o calvário e a crucificação são momentos distintos mas que podem ser objetos de uma leitura unificada, quando o que os unifica é a vitória temporária dos interesses materiais daquele povo, naquele tempo, sobre as perenes lições reveladas pelo Mestre de Nazaré. E o tempo, como um ótimo juiz, se encarregou de estabelecer a solidez dos valores anteriormente contestados, que serviriam como base para a construção da nossa estimada civilização ocidental. Aí esta parte de nossas raízes, os nossos alicerces e porque não dizer assim, a nossa mais profunda identidade. Mesmo para aqueles que negam isso, tendo em vista os desdobramentos seculares, principalmente a partir da modernidade, já estão embebidos destes valores perenes pois, os modernos,  ao traduzir os valores cristãos para um contexto secular,  não abriram mão  da essência dos mesmos, conquanto eles tenham ficado um pouco desordenados pela falta da base contextual que lhes dimensionava. O que quero dizer é que sem a noção da transcendência, os valores podem ser interpretados fora da sua verdadeira escala: o prazer fugidio pode se transformar em felicidade, a verdade ou a busca dela não raro se transforma em convencionalismo a atender o interesse de grupos restritos, sejam eles políticos e/ou econômicos;  a estética pode servir apenas para refletir e ampliar os modismos de um tempo e não mais embelezar o mundo através de valores ontológicos ou espirituais; e a virtude consistir mais em parecer ou desfrutar de uma boa imagem pública do que viver intensamente e de maneira honesta aquilo que torna o homem realmente virtuoso.
Jesus, sem ser um revolucionário no sentido vulgar do termo, tratou de restabelecer as coisas em sua verdadeira dimensão e identidade. Mesmo quando o triunfo e os aplausos estavam voltados para o avesso do que vivera, nunca se deixou levar pelo espírito do tempo, embora tenha deixado claro que não viera para romper a antiga lei judaica, mas lhe dar prosseguimento. O "espírito do tempo" reflete a capacidade que os homens de um determinada espacialidade- temporal tem de perscrutar ou aproximar-se dos valores perenes, àqueles que estão inscritos na própria estrutura da realidade. Embora os diferentes costumes e as diferentes formas de expressão desses valores derivem da cultura, alguns elementos comuns, estruturais, se repetem e revelam a objetividade dos mesmos. Justiça, ciência, amor, amizade, conquanto adquiram formas peculiares devido à diversidade cultural, preservam ontologicamente seu conteúdo essencial, a ser descoberto pelos homens ao longo do tempo histórico.  O princípio segundo o qual o ser se diz de muitas maneiras, embora preserve uma unidade focal, conforme asseverou Aristóteles, parece poder ser aplicado aqui. O ser das coisas, conforme referido, adquire diversos formatos a depender da cultura na qual se está a  analisar, embora preserve uma estrutura básica que permite aos homens a identificação dos diversos seres. O ser da justiça, o ser do amor, o ser da amizade podem ser reconhecidos inter-culturalmente justamente porque apresentam elementos que podem ser identificados por todos os homens com capacidade de sentir e inteligir.
A reflexão parece fugir um pouco do objetivo inicial, mas alinha-se aos propósitos originais quando buscamos refletir sobre o modo como nos inserimos no espírito deste tempo. Estamos sendo verdadeiramente cristãos, amando, respeitando e sendo indulgentes com as faltas alheias e firmes em nossa própria conduta e propósito? Ou preferimos o aspecto formal do cristianismo, nos desapegando da essência dos ensinos evangélicos? ou ainda, se nos descristianizamos de tal modo que nos reconhecemos perfeitamente vivendo em um mundo cada vez mais hostil aos valores cristãos? Estamos presos ao espírito do tempo, e portanto na imanência, ou estamos no caminho que conduz à transcendência, aos valores perenes? 
Voltemo-nos, portanto, ao caminho da cruz, que nos ensina que mais vale o peso da contrariedade momentânea, para a vitória futura, do que a vitória momentânea que muitas vezes significa derrota ou estagnação espiritual. O caminho da cruz revela, em um só ato, as agruras e as recompensas do caminho: a primeira sempre momentânea, e a segunda substanciosa, de longa duração e radicada em nossas melhores esperanças. A esperança não sendo considerada como qualquer exterioridade que possa vir ser conquistada, já que o que está em jogo, no caminho da cruz, é a conquista de nós mesmos, hoje e pela eternidade.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Metafísica Aristotélica: a ciência do Ser

      Todos os homens, segundo o estagirita, têm uma inclinação ao conhecimento, e isto se deve à sua própria natureza. Ele demonstra essa afirmação dizendo que existe por parte dos homens uma valorização das sensações, em que pese sua utilidade prática ou não. São, portanto, estimadas em si mesmas, como a sensação da visão, por exemplo.      A destreza [1] pode ser entendida como essa inclinação natural ao saber que, se bem usada, ou seja, se tem como meta o conhecimento em si mesmo, é digna de elogio; entretanto, se mal empregada degenera em esperteza. O que muda é o status de dignidade que ela adquire conforme a maneira como é utilizada pelos homens. O que torna, portanto, essa capacidade digna ou não são os fins que se busca atingir com a mesma.
    A viagem que conduz ao conhecimento começa através das sensações, que decorrem do contato humano com a realidade exterior. Os animais, por natureza, nascem dotados da capacidade de sentir, e a partir das sensações que experimentam, em alguns se forma a memória e em outros não. Os animais onde a memória surge, diz o filósofo, são mais perspicazes do aqueles em que a memória não se engendra.
    Os homens tem uma peculiar característica com relação aos outros animais inferiores, que é a capacidade de, através da memória, que compreende as diversas recordações dos objetos e fatos ocorridos no mundo, formarem a experiência. A experiência nada mais é do que o conhecimento das coisas particulares. Os objetos do mundo físico, os outros homens, são compreendidos pelo experiente como instâncias pertencentes a certos tipos, como instâncias de universais.
    A prudência [3] só se desenvolve no Ser cognoscente, portanto, quando, a partir da passagem do tempo, e com o auxílio das sensações e da memória, ele começa a produzir um tipo menos preciso de conhecimento, a partir da repetição e do contato com os objetos e fatos do mundo exterior. Cabe ressaltar que este tipo de saber ainda não representa o ápice do conhecimento e nem satisfaz os propósitos de Aristóteles no que tange à ciência buscada.
     O saber de fato, prossegue o filósofo, pertence mais a técnica do que a experiência, pois somente a ciência e a técnica podem favorecer o homem com o conhecimento das explicações profundas ou causas. A pergunta que norteou todo o processo do conhecimento em Aristóteles, “ o que é isto?” só pode ser respondida de modo satisfatório nesta etapa do processo de conhecer. É nesta etapa que se situam os sábios e o seu conhecimento dos universais. A sabedoria [2] é, deste modo, a ciência dos universais.  Ela é possuída pelos sábios, que se distinguem dos experientes por serem conhecedores de princípios e causas que representam o ápice da jornada do conhecer, compreendida em quatro momentos( sensação- memória- experiência- ciência ou técnica), no qual somente o último nível traduz  o conhecimento buscado por Aristóteles, conhecimento em sentido estrito.

Metafísica aristotélica- o princípio de não-contradição

        Aristóteles assevera que há uma ciência que, distintamente das ciências particulares, investiga o ente enquanto ente, ou seja, investiga as propriedades  que fazem com que uma substância seja o que é. Enquanto as ciências particulares como a matemática e a física já partem de axiomas universais, tomados a priori, a ciência do Ser, ou ciência buscada de Aristóteles, investiga quais seriam esses princípios primeiros, estando amparada em um caminho epistemológico que começa com as sensações, passa pela memória, através da qual se adquire o conhecimento em sentido fraco, e tem seu ponto alto com a ciência, quando as causas e explicações, caracterizadas pelo máximo grau de generalização, são conhecidas, ou, dito de outra maneira, quando os universais contidos nos particulares se revelam ao sábio.
      Compete ao filósofo, portanto, e não aos estudiosos da natureza, estabelecer os princípios fundamentais sobre os quais a ciência do Ser deve se fundamentar. O estagirita chega ao conhecimento daquele que é o primeiro princípio, o mais firme de todos, o princípio de não contradição, pelo qual é impossível que um mesmo atributo pertença e não pertença a um mesmo subjacente ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Segundo o filósofo, portanto, é impossível que os contrários pertençam a mesma coisa  ao mesmo tempo, de modo que sobre esse princípio é impossível se enganar, visto que as pessoas se enganam sobre aquilo que desconhecem, e ademais, esse princípio está fundamentado na própria estrutura da realidade, de maneira que ele não se qualifica como uma mera hipótese.
        Sendo o princípio de não contradição  o mais conhecido, sobre o qual é impossível se enganar e necessário, cabe a Aristóteles a defesa do mesmo, conforme o faz no capítulo 4 da metafísica, utilizando a prova por retorsão. Aqui cabe uma pequena distinção feita pelo filósofo sobre a demonstração e a demonstração refutativa. Segundo assevera, ao demonstrar, o interlocutor já postula o princípio a ser defendido, enquanto que em uma prova por refutação, não haveria demonstração nesse sentido considerada. Segundo Lear, a estratégia que Aristóteles adota não é a de convencer alguma pessoa que não acredita no princípio de não contradição, e sim mostrar que mesmo negando o princípio ou não acreditando nele, dele se utiliza, de maneira necessária, quando busca compreender a realidade.
        O estagirita não pretende exigir que o seu adversário afirme que algo é ou não é, mas exige que o interlocutor apenas queira dizer algo com sentido para si mesmo e para outrem.O responsável pela demonstração é o próprio adversário que, ao afirmar que o princípio de não contradição não existe, postula uma declaração com sentido e, portanto, acaba por demonstrar o princípio. Algo não pode ser e não -ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, conforme sustenta o princípio. Portanto, se o princípio de não contradição é falso, tem um significado, e não é verdadeiro ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Logo, ao recusar o princípio, postulando uma declaração, o adversário acaba ele mesmo por demonstrar, por refutação, o princípio.
       Mesmo que não acredite no princípio, ao enunciar algo com pretensão de verdade, o interlocutor acaba por acionar o mesmo. O princípio de não contradição tem, deste modo, uma forma ontológica, ou seja, está inscrito na própria estrutura do real;e uma forma psicológica, conforme referido, já que se algo existe na estrutura da realidade, é impossível conceber a realidade sem fazer referência a este algo.  É impossível conceber que um atributo pertença e não pertença ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto a um ente. O branco e o não branco não coexistem ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto em um mesmo subjacente, o quente e o não quente, o ser e o não ser, e assim por diante. O princípio de não contradição é o mais incontestável, portanto, e fundamento para a ciência do Ser na medida em que, segundo Lear, a própria possibilidade da ação, do pensamento e de uma atitude discursiva dependem da adesão, ainda que inconsciente, à sua verdade.
  
        Referências:
 
 ARISTÓTELES. Metafísica gamma, capítulo 3-4, Tradução Lucas Angioni (não sei o ano, hehe).
 
 LEAR, Jonathan. Aristóteles: O desejo de entender, 2008.