sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Sobre a integridade



 A reflexão de hoje pretende ser mais breve, direta e simples. Ela diz respeito, de modo geral, ao homem, e de maneira mais específica, a possibilidade  que ele desfruta de viver em harmonia e atualidade com seus recursos espirituais.
O que caracteriza um ser humano íntegro? Ora, se pensarmos que há um processo de desenvolvimento espiritual inexorável e que de vários modos não tomamos posse dos recursos atinentes a esse processo, poderíamos concluir que estamos em um contínuo processo de acabamento, de via-a-ser. Admitindo a realidade desse árduo e trabalhoso processo, redarguiríamos: e  quando o ser humano opta por sair dessa tarefa virtuosa? o que ocorre quando nega os valores e princípios que são a meta e o telos de sua jornada espiritual?
Estamos pressupondo aqui, com base nos aspectos mais empíricos da psicologia Junguiana, a existência de um self, um núcleo central da psique que é responsável e que coordena todo esse processo de desenvolvimento. Mas, de modo terminante, devemos reconhecer também que o que potencializa o "florescimento" desse núcleo, além das experiências da vida diversas a que o homem se defronta constantemente,  é a vivência de certos valores universais, que representam uma espécie de catalizador de seus recursos mais íntimos.
 Entretanto, há uma realidade que se opõe a essa vivência virtuosa, a esse processo de interiorização tão necessário ao si mesmo. Muitas vezes a realidade humana exterior, que deveria possibilitar a vivência do si e do nós, torna-se um elemento que acaba por sustar esse processo de integração e individuação primariamente psíquico.
Nas fontes da alma, a espiritualidade genuína. Nesse mergulho intimista e espiritual, os valores mais nobres da criatura humana: os padrões adequados de conduta, os sentimentos mais elevados, sem os resquícios do interesse e do cálculo, a sede do belo, da verdade e da justiça. Nesse templo interior, todos os templos humanos deveriam buscar o espelhamento. E a essa beleza inefável, não estamos nos referindo ao homem em sua acepção atual, o  qual busca as identidades sociais como forma de compensar um marcado vazio interior. Tal homem não se deixa apanhar pelo conceito e pela abstração, pois sua realidade não é apreendida em um exercício de pensamento, pode no máximo ser intuída em uma observação mais atenta da existência. Também não pode ser descoberto nas identificações ligeiras, que simplificam em demasia a sua complexidade e envergadura.
Nessa descoberta de si para si, no momento mais subjetivo desse processo, não temos a rigor um "para si". Estamos diante de Deus! Reconhecendo as nossas misérias mas também tomando ciência de nossas reais possibilidades. Essa construção subjetiva agora envolve um nós: o eu transparece a vontade do Criador desse eu.
Iniciou-se o processo de edificação espiritual, de reforma íntima. A esse momento interior e profundo, em que o otimismo existencial sobrevém, sucede-se um segundo, estamos falando de um ponto de vista lógico e não temporal, que é o do contato com a realidade exterior. Nela, algum desencanto. Não que o mundo não seja um lugar belo, atravessado pelas verdades eternas. O que ocorre é que muitas vezes as realidades humanas construídas não refletem ou não são capazes de estruturarem-se tendo em vista esses elevados padrões que a própria alma em sua intimidade reconhece. Daí a astúcia em detrimento da inteligência; o interesse escuso em detrimento da justiça; a objetificação das pessoas em detrimento do amor. 
E qual seria o dever da alma que, consciente de suas misérias e insuficiências, iniciou esse trabalho espiritual em si mesma, face a esse problemático e disfuncional quadro social humano? A resposta muitas vezes nem precisa ser pensada, pois nesse caso reverbera em todo o ser espiritual, é como um rio que não admite mais um espaço contrito. Ressoando essa resposta em todas as fibras de alma, poderia ser apreendida conceitualmente como um: seja si mesmo! não se deixe corromper!
Diante da injustiça, fale e se pronuncie em nome da justiça. Diante de uma falsidade flagrante e que prejudique a muitos, imponha-se através da verdade edificante. Perante as facilidade humanas, dos prestígios, dos cargos, pense sempre nos elevados valores que já descobriu em si e relativize  tudo que possa ser um fator que o afaste dessa vivência espiritual legítima. Todos estamos nesse mundo para trabalharmos para o Senhor que nos deu essa vida, estejamos conscientes disso ou não. Nada no mundo pode ser comparado à possibilidade de edificação espiritual, assim como nenhum cargo ou título de cariz transitório  pode satisfazer mais a alma do que ser íntegro, tornando-se assim, de modo imediato e sem restrição, um humílimo servidor de Jesus.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Sobre a sacralidade da vida




 Considerando o contexto sociocultural ocidental como um fluxo imparável, o qual atinge seu paroxismo no período contemporâneo, momento em que nem mesmo a sincera busca pela verdade moderna é levada em conta, tem-se de modo inegável um ambiente sui generis.

Nesse contexto, todas as coisas adquirem uma nova e mais pobre significação. Não se trata mais de um ceticismo à moda moderna, cujo propósito precípuo seria solapar as falsas considerações a respeito da realidade, para fazer emergir verdades certas e sem sombra de dúvidas, tal qual fez Descartes. Não! As verdades universais, sempre presentes nas considerações dos homens de bom senso, em todas as épocas, o que permitia a eles participarem do grande debate ( e do debate dos grandes) dos séculos, são vistas através das lentes da suspeita desconstrucionista.

Sendo assim, as grandes verdades das religiões, que muito serviram ao propósito da edificação humana e social, tornam-se antiquadas ao longo desse processo social que parece conduzir o homem a um subjetivismo sem medida, posto que acaba lhe retirando todos os referentes indispensáveis ao seu próprio desenvolvimento espiritual. Poderíamos elencar três possibilidades na qual esse materialismo acaba se expressando, as duas primeiras trabalhamos em nossa tese acadêmica: nas críticas contundentes e frontais às religiões; de modo mais sutil e elaborado através de um convite aberto ao homem contemporâneo para que mergulhe em um hedonismo vivencial e, como última e não menos trágica figura, temos à própria vivência falsa e problemática da espiritualidade, seja por ocasião de uma vivência que privilegia o bem-estar em detrimento dos deveres austeros, seja pela falsidade grosseira de buscar na relação com Deus uma ocasião para suprir os próprios interesses materiais, em detrimento dos espirituais.

Mas, mesmo diante dessa situação problemática, há uma espiritualidade a ser buscada da qual as religiões sérias sempre foram as fiadoras. Talvez um questionamento oportuno nesse momento poderia ser feito nestes termos: como enxergar o sagrado em um mundo cada vez mais hostil a considerações dessa natureza?

Havendo dois modos de ser no mundo, conforme considerações de Mircea Eliade, filósofo romeno e historiador das religiões, caberia ao homem contemporâneo uma conversão de vistas. Segundo o intelectual, o tempo e o espaço vem sendo considerado pelo sujeito de nossos dias como elementos amorfos, sem vida e homogêneos. Tudo é visto de modo profano, em sua materialidade fria e monótona. Entretanto, isso nem sempre foi assim. A sacralidade da vida sempre foi celebrada pelos homens ditos pré-modernos, que buscavam espaços no tempo para acolher as mensagens eternas do mais alto. O filósofo Romeno chamou esse fenômeno em que a cotidianidade da vida é iluminada pelo sagrado de hierofania.

Kiekergaard, intelectual que o precedeu, cunhou o termo instante, para referir-se  basicamente a mesma ideia essencial, que diz respeito ao eterno quando avança sobre as brechas do tempo. Para o dinamarquês do século XIX, nesse momento existe a possibilidade de uma conversão radical do homem, uma mudança de vistas. 

O que parece conduzir a nossa reflexão é questionar o próprio homem em seu modo de ser profano. Se a eternidade envolve o tempo, se a sacralidade é uma maneira de enxergar a própria realidade, o que faltaria nessa quadra histórica é uma nova abertura à realidade por parte do homem. O que vem tisnando as vistas desse indivíduo impelido pelo desconstrucionismo, o impedindo de enxergar essas hierofanias no tempo, é a maneira como percebe o próprio tempo,  uma vez que vive a imediatidade sem reter dela qualquer elemento mais significativo. O que há de eterno em cada momento prosaico, em cada evento cotidiano, ele se torna incapaz de perceber. A eternidade que envolve o tempo, único elemento da realidade capaz de alimentar seu sequioso espírito, não é percebido por ele. Assim, o tempo torna-se o pano de fundo para a justaposição de eventos sem significado para a vida humana, e o homem passa de um a outro evento como quem atende a uma rotina,  no afã, contudo, de frui-los em sua totalidade, julgando que essa fruição que logo revela seu caráter frágil e fugidio, representa a "felicidade" ou "uma vida plena". 

Talvez o nosso principal desafio seja perceber essas hierofanias no tempo, fazer com que cada evento cotidiano torne-se enriquecido pela cifra de eternidade que carrega. Devemos  buscar o sentido espiritual da existência que se esconde na materialidade aparentemente fria da natureza. Toda a nossa espiritualidade genuína, embora possa ser orientada por uma instituição humana, depende no fundo da nossa própria mudança de vistas, talvez uma mudança radical de percepção. Nesse sentido, podemos considerar a espiritualidade como um das atividades humanas mais desafiadoras ao homem, posto que lhe possibilita um constante trabalho de qualificação vivencial e, ao contrário das críticas que sugerem que tal coisa o faz mergulhar em uma espécie de neurose ou ilusão, torna-o, isto sim, mais aberto aos aspectos essenciais da realidade, em uma conexão bastante producente consigo e com os outros, em um equilíbrio entre interioridade psíquica e exterioridade mundana. Em suma, tudo se torna transparente a esse sujeito renovado: vê na matéria e nos acontecimentos o sentido transcendente que os sustenta e define. Adquiriu o sentido mais pleiteado em qualquer processo de individuação: vê com os olhos do espírito a própria sacralidade da vida.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Sobre a complementariedade entre fé e razão




 Ora, nos deparamos agora com a intrincada questão que emerge da possibilidade de relação entre dois campos fundamentais da atividade humana. Por se tratar de uma questão perene e inconclusa como esta, devemos ter sempre em mente que esse fato se deve a própria complexidade dos objetos a serem brevemente investigados: fé e ciência são âmbitos da realidade e, portanto, da atividade humana que funcionam de acordo com regras e conceitos próprios, que podem e muitas vezes são entendidos como autossuficientes com relação as suas possibilidades e objetivos de análise.
Muito em função do desenvolvimento do processo histórico conhecido como modernidade, do qual somos todos herdeiros diretos, a ciência começou a adquirir, em um primeiro momento, a primazia sobre os mais distintos campos do conhecimento, os quais passou a explicar ainda de modo concorrente a outros tipos de saberes e, em um segundo momento, começou a adquirir um tal status superior, que seus conhecimentos, que se mostraram aptos e suficientes para transformar a realidade material, logo transformaram-se no único meio possível para o entendimento do mundo.
A contemporaneidade corresponde a um aprofundamento dessa modalidade de "desencantamento do mundo", conforme considerou de modo fidedigno Max Weber, que em sua análise sobre a sociedade moderna e sobre os padrões de racionalização que se impunham a todos, conseguiu oferecer uma chave de leitura fundamental para todos aqueles que buscariam posteriormente entender todo esse processo histórico-social.
Contudo, esse processo moderno de racionalização e mesmo as formas mais contemporâneas de rejeição à fé são incapazes de conjurar o impacto profundo que essa experiência terminante de Deus pode trazer ao ser humano. Ora, no fundo da psique humana, repousa uma religiosidade inconsciente, alertara Jung e Frankl em suas teorizações com base em rico material empírico. Diante de uma sociedade cada vez mais secularizada, pautada por uma racionalidade fria e instrumental, ainda existe um homem aberto a uma relação profunda com seu Criador. Há uma religiosidade natural que pode ser definida como um potente fluxo instintivo, uma força psíquica colossal, conforme considerou o próprio Jung. 
Mas como conciliar as exigência da razão moderna com essa necessidade psíquica humana que diz respeito a expressão de sua religiosidade constitutiva? Como enfrentar o "desencantamento do mundo" sem mergulhar o homem em um encantamento forçado e distante das exigências da razão?
Como um apontamento bastante despretensioso, só a título mesmo de reflexão, poderíamos considerar que a ciência em suas conjurações é sim capaz de oferecer ao homem um retrato significativo, conquanto inconcluso e sempre carente de novas retificações, de distintos âmbitos concernentes às nossas realidades - as realidades sensíveis.
Entretanto, a percepção da unidade, da solidariedade que liga os fenômenos de que trata a ciência só pode ser alcançada de maneira imediata pela religiosidade em sua expressão natural. Ora, como enxergar o sentido, a intencionalidade por detrás de cada fenômeno no momento em que ele é perscrutado pela mente científica, se não há uma mente humana plenamente integrada em suas potencialidades naturais e, portanto, apta a estabelecer os liames e sentidos que subjazem aos fenômenos. O que a metafísica leva mais tempo para fazer, dada a sua vocação racional, a fé, ao possibilitar ao sujeito conhecedor um contato profundo com esses âmbitos da realidade que são infensos ao empirismo de matriz científica, o faz de modo imediato, lançando o homem em uma dimensão povoada por sentidos elevados, intencionalidades e mistérios.
A perspicácia da mente científica, suas conjurações, seu poder de análise, consubstanciada no modo de ser moderno, reclama poder de síntese, olhar profundo, conhecimento da realidade em si -  para Kant o númeno - ou ao menos um ligeira ultrapassagem dos limites do que é tido por certo. E, nesse sentido, as faculdade religiosas, adormecidas no homem de nossos dias, reclamam por certo um atendimento. Há, enfim, uma realidade que nos espera com seus mistérios, por enquanto, indecifráveis; e talvez, como possível solução a isso, valendo-nos do expediente da alegoria, em sua relação com esse homem recalcitrante, a "realidade" diria a ele o que uma vez foi dito ao velho Sócrates: " Conhece-te a ti mesmo".

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A experiência humana como fonte de transcendência



“Mas abençoados são os vossos olhos, porque enxergam; e os vossos ouvidos, porque ouvem”  Mateus 13:16

Este blog assume como pressuposto que a espiritualidade genuína pode ser encontrada em toda a religião séria e que, particularidades ritualísticas à parte, propõe aos homens um modo de vida orientado por valores que, dado a sua natureza permanente, não são simples construções histórico-sociais, antes, são ontológicos, ou seja, fundamentos de todo o devir.
Toda a espiritualidade tem uma base metafísica, algo que a fundamenta de maneira forte, o que faz com que possa permanecer ao longo do tempo sem os abalos das constantes mutações históricas. Toda mudança tem um quê de permanência e, diremos ainda, que há uma dimensão de permanência sem a qual as próprias mudanças seriam inviáveis. Dito isso, iremos refletir nessa breve postagem sobre o possível lugar da experiência humana como fundamento para uma vida orientada para a transcendência.
O transcendente, em um contexto de espiritualidade, refere-se àquela dimensão que estrutura a vida, e na qual as peripécias e eventos dessa experiência humana seriam apenas meios, caminhos mais ou menos fastidiosos que teriam por fim a obtenção de uma felicidade de tipo muito superior: a experiência final de Deus. Mas, qual o possível contato com o divino, o permanente, o Qui Est ( Que É) em meio as nossas mais comezinhas experiências?  Viver a experiência do mundo, contudo, não é encarnar o espírito do mundo, e não é, de igual maneira, conforme sugere o Evangelho, se cobrir de cinzas e transpor para a face um lúgubre aspecto.
Há uma íntima relação entre o que é imanente e o transcendente. O sentido, os propósitos e desígnios se revelam através das coisas. É como se elas fossem dotadas de uma espécie de transparência, em que o olhar atento é capaz de extrair algo como um fundamento, e este fundamento, por sua vez, dissesse algo do seu Fundamentador, do que é buscado em toda a experiência espiritual. Por isso, a espiritualidade, em nossa modesta opinião, tem como fim último a busca pelo Criador e não se encerra em um culto ao que é criado, a natureza, pois a natureza só nos possibilita uma experiência espiritual e, portanto, transcendente, quando nos transporta de sua irredutível impermanência para a divina permanência. Ser transportando desta forma é experimentar o (Qui Est) de maneira radical, é, para utilizar uma frase popular, estar na presença de Deus.
O amor, a busca pela verdade, a busca pelo que é belo, contemporaneamente tão discutidos, são caminhos seguros que favorecem experiências deste tipo. Ter os pés no terreno firme e não raro hostil da experiência humana nos permite, por vezes, experimentar a verdadeira alegria, quando a inteligência e o coração voltam-se para o que é substancial, para o que subjaz, para o que está além do transitório.
Uma experiência espiritual, portanto, não é como um despir-se da condição humana, é, antes, experimentar essa condição humana em sua inteireza, de maneira radical. Em as experiências humanas carregando em si mesmas certos valores e sentidos permanentes, só teremos acesso a essa dimensão propriamente dita no território mesmo da vida diária: Nos obstáculos que enfrentamos em nós mesmos, nos desafios que nos impelem ao crescimento e, de igual modo, nas amenas situações que nos fazem experimentar uma espécie de “sem tempo”: uma amizade bem construída, um amor que sabe renunciar, uma verdade que se impõe e etc.
O transitório carrega em si mesmo uma face permanente, seja um princípio ou valor e, mesmo as situações comezinhas da experiência humana são momentos propícios e ricos em espiritualidade. Há por vezes oculto em um ligeiro sorriso, um permanente bem querer; em uma palavra não dita, a caridade que sabe silenciar; em uma expressão inamistosa, a justiça sendo violada e querendo se impor; em uma dúvida, a mais sincera busca pela verdade.
 Compreender o não dito, o não expresso, é de inteira responsabilidade nossa, é saber ter olhos profundos para as coisas e, com isso, acessar uma dimensão da vida igualmente profunda. Ter esse olhar espiritual é, parafraseando o Evangelho, viver como que transportado de si mesmo; é, sem sair do tempo e desde a transparência das coisas e situações, ter acesso ao verdadeiro sabor da vida, a alegria do evangelho, em que os mil nadas da experiência humana, que ferem como picadas de alfinete, se transformam em outras mil e tantas oportunidades de crescimento e renovação espiritual. Do transitório ao substancial não há um processo alquímico e automático que o garanta, tudo é uma questão de “o que estamos buscando” e de quais aspectos da realidade estão em consonância com os nossos interesses. Ter olhos para ver significa contemplar, em meio a transitoriedade do diverso, a unidade do que é substancial, é colocar-se lá mesmo no ser das coisas, onde, como diria Bergson, a vida se realiza plenamente como em um fluxo, em que a alegria, em seus contornos reais, é o sinal mais claro de sua verdadeira plenificação.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Combate interior



 

“Tendo o mesmo combate que já em mim tendes visto e agora ouvis estar em mim.” Filipenses, 1:30

Em plena juventude, Paulo terçou armas contra as circunstâncias comuns, de modo a consolidar posição para impor-se no futuro da raça. Pelejou por sobrepujar a inteligência de muitos jovens que lhe foram contemporâneos, deixou colegas e companheiros distanciados. Discutiu com doutores da Lei e venceu-os. Entregou-se à conquista de situação material invejável e conseguiu-a.
Combateu por evidenciar-se no tribunal mais alto de Jerusalém e sobrepôs-se a velhos orientadores do povo escolhido. Resolveu perseguir aqueles que interpretava por inimigos da ordem estabelecida e multiplicou adversários em toda parte. Feriu, atormentou, complicou situações de amigos respeitáveis, sentenciou pessoas inocentes a inquietações inomináveis, guerreou pecadores e santos, justos e injustos…
Surgiu, contudo, um momento em que o Senhor lhe convoca o espírito a outro gênero de batalha – o combate consigo mesmo.
Chegada essa hora, Paulo de Tarso cala-se e escuta…
Quebra-se-lhe a espada nas mãos para sempre.
Não tem braços para hostilizar e sim para ajudar e servir.
Caminha, modificado, em sentido inverso. Ao invés de humilhar os outros, dobra a própria cerviz.
Sofre e aperfeiçoa-se no silêncio, com a mesma disposição de trabalho que o caracterizava nos tempos de cegueira. É apedrejado, açoitado, preso, incompreendido muitas vezes, mas prossegue sempre, ao encontro da Divina Renovação.
Se ainda não combates contigo mesmo, dia virá em que serás chamado a semelhante serviço.
Ora e vigia, prepara-te e afeiçoa o coração à humildade e à paciência. Lembra-te, meu irmão, de que nem mesmo Paulo, agraciado pela visita pessoal de Jesus, conseguiu escapar.

Emmanuel

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Músicas para meditação

A meditação e o entrar em contato com o Eu superior através da música elevada são formas bastante producentes de enriquecer a nossa caminhada espiritual. Em um próximo post eu escreverei sobre isso. Por enquanto, aí vai algumas sugestões para as pessoas que apreciam momentos de recolhimento e meditação.O primeiro vídeo é de cantos gregorianos, embora tenham uma roupagem diferente, pois os cantos gregorianos, acredito eu, não vêm acompanhados de um arranjo musical do tipo que é apresentado no vídeo. O segundo vídeo compreende uma proposta de relaxamento e meditação oriental mediante a harmonia sonora dos sinos tibetanos. Então, acomode-se em um lugar confortável,  silencie a mente, e aproveite!





domingo, 16 de abril de 2017

O Eu Superior


Das tantas leituras a que nos submetemos ao longo dos semestres acadêmicos, algumas nos causam estranheza, por estarem fundamentadas em um universo de significados e valores distintos dos nossos; outras tantas nos causam um certo contentamento, ao expressarem aquelas nossas intuições mais profundas que, por imaturidade espiritual e intelectual, ainda não temos condições de expressá-las. Ademais, outras tantas nos causam gratas surpresas, como é o caso da obra que irá fundamentar a reflexão desta postagem: refiro-me a um pequeno livro chamado " O Poder Do Agora", de autoria de Eckhart Tolle.
Confesso que, dada a quantidade de livros que tratam sobre espiritualidade, muitos dos quais de maneira bastante fútil e vazia, nutria alguma suspeita sobre alguns tipos de literatura. Suspeita esta que logo foi quebrada no momento em que, sem as prevenções  habituais, deixei-me conduzir pela leitura, buscando me aproximar da intuição original do autor. Ou, ao menos me localizar em um estágio intermediário entre a intuição originária e a linguagem, conforme sugestão de Bergson.
O fio condutor da reflexão do autor pode ser colocado nos seguintes termos: a vivência espiritual só é genuína quando conseguimos dissolver os conflitos do passado e restringir as projeções  no futuro com base no tempo presente,  mediante o exercício de ordenação e hierarquização entre o Ego e o Self. Aquele é considerado como a nossa identidade mais superficial, compreendendo as maneiras de sentir e agir que são formados através do processo de socialização que inicia desde os primeiros anos até a idade adulta. O segundo elemento da psique é identificado como o Eu verdadeiro, a própria essência do Ser, um Eu profundo que, dada a fragmentação do espaço e do tempo, está em um contínuo vir-a-ser aparente.
O que o autor propõe é que, mediante certas posturas específicas, que envolvem sentir e viver de maneira intensa o tempo presente, as pessoas possam "ouvir" esse Eu superior, seus direcionamentos, sensos e percepções profundas. O self, assim considerado ,seria como que um lugar cheio de potencialidades, a espera das circunstâncias e eventos exteriores para que possa se desenvolver, comunicando seus conteúdos a essa camada superficial da consciência que o autor designa como Ego. O propósito não é tratar destes conceitos com o rigor que eles merecem e conforme são tratados na psicanálise e nas ciências psicológicas, mas apenas perceber essa diferença entre estes dois aspectos diversos da consciência, que cumprem funções distintas mas complementares em nossa psique. A ideia de um Eu profundo, superior, que esconde as potencialidades humanas é bem antiga. É uma intuição básica em grande parte da filosofia clássica e medieval e com algumas ressonâncias na filosofia moderna. Poderíamos pensar em uma relação entre esse elemento mais profundo da psique,o Self, e a própria noção de essência na filosofia. A ideia, presente em Aristóteles quando se refere à natureza, de que todas as coisas têm em si mesmas o próprio móvel do seu desenvolvimento parece bem similar a essa noção de Self trabalhada pelo autor.
Usando uma linguagem metafórica, o Self seria como que um leme a disposição do Ser em seu itinerário em um rio caudaloso. Esse rio caudaloso corresponderia às circunstâncias exteriores. Embora os eventos exteriores se coloquem a nós de maneira quase impositiva, de modo que não temos tanto controle sobre eles, temos a nossa disposição esse conjunto de sensos, percepções e potencialidades que, quando bem atualizadas, nos permitem navegar em uma rota segura de modo  que o navio, que é o nosso Ser integral, não soçobre. Surge aqui a ideia de que nossa saúde espiritual, que pode ser compreendida como a boa comunicação entre o Ego e o Self, nos permite enfrentar esse "mar" de circunstâncias sem perder o rumo ou o sentido real de nossa existência, que só pode ser encontrado dentro de nós mesmos, pois, conforme Eckhart sustenta, somos possuidores desse Eu maior. Embora o sentido maior da vida pareça ser a realização dos Seres, o modo como os Seres se realizam são tão variados quanto as suas naturezas. Ao pintor, a realização estaria ligada a busca da beleza, ao sábio à sabedoria, aos homens de ciência, à busca da verdade científica, e assim por diante. A realização de cada indivíduo corresponderia, ainda, à realização do todo, como em um grande concerto do qual a harmonia da música provém da perfeita realização da vocação individual de cada instrumento.
Do Eu profundo é de onde partem as nossas intuições mais profundas sobre a vida, sobretudo as éticas e estéticas e porque não as epistêmicas. Nessa cognição intuitiva, conforme mencionamos em um post anterior, a verdade não é mais algo a ser buscado pela mente racional em um processo metódico, mas algo que simplesmente vem a tona e é sentida de maneira profunda antes mesmo de ser comunicada. Por isso tanta suspeita recaí sobre a intuição e a possibilidade de se produzir conhecimento através dela. À intuição é dada um papel bastante secundário no conhecimento, geralmente utilizada em uma fase inicial, quando a investigação carece dos necessários princípios mais gerais que fundamentam e justificam toda a busca posterior.
Um enorme conjunto de forças conflitantes fazem parte de nossa alma, nos constituem. Nessa batalha ininterrupta, neste terreno propriamente espiritual, a única certeza que temos é  de que devemos estar sempre alinhados com o nosso Eu superior. Assumindo que existe uma ordem perfeita na criação, a nossa realização profunda é, em última instância, a realização do conjunto, seja a nossa família ou a nossa comunidade. Embora compartilhando uma humanidade comum, ou seja, um conjunto de atributos invariantes que podem ser identificados em todos os homens particulares, cada um de nós tem algo único para oferecer a esse mundo. Uma espécie de vocação individual que só nós podemos sustentar e afirmar. Essa vivência do Eu real talvez nos coloque em circunstâncias e caminhos diferentes da maioria das pessoas. Talvez alguns momentos de solidão sejam necessários à nossa alma até descobrir as pequenas tarefas a que foi chamada. Contudo, a vida carrega sempre a esperança em seu bojo, e da interiorização e do escrutínio de si  mesmo sucede a abertura, as realizações materiais, os encontros. Estar sozinho não é estar recolhido, é estar longe de si mesmo, longe da própria realização e vocação, vivendo com a cabeça e valores alheios, enquanto que, mesmo nos momentos de recolhimento e aparente solidão que a vida nos impõe, podemos experimentar a sensação de estarmos plenos, acompanhados e guiados por nossos sensos mais profundos e,  na medida em que estamos alinhados com a nossa alma, no que tem de mais profunda e nobre, estamos alinhados com os valores perenes da vida, nos realizando e, como consequência, realizando a vontade de Deus. A espiritualidade é, portanto, interiorização e abertura, escrutínio e trabalho;  melodia harmoniosa que resulta da realização de cada Ser e que, ao mesmo tempo em que o distingue e  torna único, o integra  em um um concerto, algo de tipo novo, em que individuar-se é fazer parte, de si mesmo e do mundo.