Considerando o contexto sociocultural ocidental como um fluxo imparável, o qual atinge seu paroxismo no período contemporâneo, momento em que nem mesmo a sincera busca pela verdade moderna é levada em conta, tem-se de modo inegável um ambiente sui generis.
Nesse contexto, todas as coisas adquirem uma nova e mais pobre significação. Não se trata mais de um ceticismo à moda moderna, cujo propósito precípuo seria solapar as falsas considerações a respeito da realidade, para fazer emergir verdades certas e sem sombra de dúvidas, tal qual fez Descartes. Não! As verdades universais, sempre presentes nas considerações dos homens de bom senso, em todas as épocas, o que permitia a eles participarem do grande debate ( e do debate dos grandes) dos séculos, são vistas através das lentes da suspeita desconstrucionista.
Sendo assim, as grandes verdades das religiões, que muito serviram ao propósito da edificação humana e social, tornam-se antiquadas ao longo desse processo social que parece conduzir o homem a um subjetivismo sem medida, posto que acaba lhe retirando todos os referentes indispensáveis ao seu próprio desenvolvimento espiritual. Poderíamos elencar três possibilidades na qual esse materialismo acaba se expressando, as duas primeiras trabalhamos em nossa tese acadêmica: nas críticas contundentes e frontais às religiões; de modo mais sutil e elaborado através de um convite aberto ao homem contemporâneo para que mergulhe em um hedonismo vivencial e, como última e não menos trágica figura, temos à própria vivência falsa e problemática da espiritualidade, seja por ocasião de uma vivência que privilegia o bem-estar em detrimento dos deveres austeros, seja pela falsidade grosseira de buscar na relação com Deus uma ocasião para suprir os próprios interesses materiais, em detrimento dos espirituais.
Mas, mesmo diante dessa situação problemática, há uma espiritualidade a ser buscada da qual as religiões sérias sempre foram as fiadoras. Talvez um questionamento oportuno nesse momento poderia ser feito nestes termos: como enxergar o sagrado em um mundo cada vez mais hostil a considerações dessa natureza?
Havendo dois modos de ser no mundo, conforme considerações de Mircea Eliade, filósofo romeno e historiador das religiões, caberia ao homem contemporâneo uma conversão de vistas. Segundo o intelectual, o tempo e o espaço vem sendo considerado pelo sujeito de nossos dias como elementos amorfos, sem vida e homogêneos. Tudo é visto de modo profano, em sua materialidade fria e monótona. Entretanto, isso nem sempre foi assim. A sacralidade da vida sempre foi celebrada pelos homens ditos pré-modernos, que buscavam espaços no tempo para acolher as mensagens eternas do mais alto. O filósofo Romeno chamou esse fenômeno em que a cotidianidade da vida é iluminada pelo sagrado de hierofania.
Kiekergaard, intelectual que o precedeu, cunhou o termo instante, para referir-se basicamente a mesma ideia essencial, que diz respeito ao eterno quando avança sobre as brechas do tempo. Para o dinamarquês do século XIX, nesse momento existe a possibilidade de uma conversão radical do homem, uma mudança de vistas.
O que parece conduzir a nossa reflexão é questionar o próprio homem em seu modo de ser profano. Se a eternidade envolve o tempo, se a sacralidade é uma maneira de enxergar a própria realidade, o que faltaria nessa quadra histórica é uma nova abertura à realidade por parte do homem. O que vem tisnando as vistas desse indivíduo impelido pelo desconstrucionismo, o impedindo de enxergar essas hierofanias no tempo, é a maneira como percebe o próprio tempo, uma vez que vive a imediatidade sem reter dela qualquer elemento mais significativo. O que há de eterno em cada momento prosaico, em cada evento cotidiano, ele se torna incapaz de perceber. A eternidade que envolve o tempo, único elemento da realidade capaz de alimentar seu sequioso espírito, não é percebido por ele. Assim, o tempo torna-se o pano de fundo para a justaposição de eventos sem significado para a vida humana, e o homem passa de um a outro evento como quem atende a uma rotina, no afã, contudo, de frui-los em sua totalidade, julgando que essa fruição que logo revela seu caráter frágil e fugidio, representa a "felicidade" ou "uma vida plena".
Talvez o nosso principal desafio seja perceber essas hierofanias no tempo, fazer com que cada evento cotidiano torne-se enriquecido pela cifra de eternidade que carrega. Devemos buscar o sentido espiritual da existência que se esconde na materialidade aparentemente fria da natureza. Toda a nossa espiritualidade genuína, embora possa ser orientada por uma instituição humana, depende no fundo da nossa própria mudança de vistas, talvez uma mudança radical de percepção. Nesse sentido, podemos considerar a espiritualidade como um das atividades humanas mais desafiadoras ao homem, posto que lhe possibilita um constante trabalho de qualificação vivencial e, ao contrário das críticas que sugerem que tal coisa o faz mergulhar em uma espécie de neurose ou ilusão, torna-o, isto sim, mais aberto aos aspectos essenciais da realidade, em uma conexão bastante producente consigo e com os outros, em um equilíbrio entre interioridade psíquica e exterioridade mundana. Em suma, tudo se torna transparente a esse sujeito renovado: vê na matéria e nos acontecimentos o sentido transcendente que os sustenta e define. Adquiriu o sentido mais pleiteado em qualquer processo de individuação: vê com os olhos do espírito a própria sacralidade da vida.
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