“Mas abençoados são
os vossos olhos, porque enxergam; e os vossos ouvidos, porque ouvem” Mateus 13:16
Este blog assume como
pressuposto que a espiritualidade genuína pode ser encontrada em toda a religião
séria e que, particularidades ritualísticas à parte, propõe aos homens um modo
de vida orientado por valores que, dado a sua natureza permanente, não são
simples construções histórico-sociais, antes, são ontológicos, ou seja,
fundamentos de todo o devir.
Toda a espiritualidade
tem uma base metafísica, algo que a fundamenta de maneira forte, o que faz com
que possa permanecer ao longo do tempo sem os abalos das constantes mutações
históricas. Toda mudança tem um quê de permanência e, diremos ainda, que há uma
dimensão de permanência sem a qual as próprias mudanças seriam inviáveis. Dito
isso, iremos refletir nessa breve postagem sobre o possível lugar da
experiência humana como fundamento para uma vida orientada para a transcendência.
O transcendente, em um
contexto de espiritualidade, refere-se àquela dimensão que estrutura a vida, e
na qual as peripécias e eventos dessa experiência humana seriam apenas meios,
caminhos mais ou menos fastidiosos que teriam por fim a obtenção de uma
felicidade de tipo muito superior: a experiência final de Deus. Mas, qual o
possível contato com o divino, o permanente, o Qui Est ( Que É) em meio as
nossas mais comezinhas experiências?
Viver a experiência do mundo, contudo, não é encarnar o espírito do
mundo, e não é, de igual maneira, conforme sugere o Evangelho, se cobrir de
cinzas e transpor para a face um lúgubre aspecto.
Há uma íntima relação
entre o que é imanente e o transcendente. O sentido, os propósitos e desígnios
se revelam através das coisas. É como se elas fossem dotadas de uma espécie de
transparência, em que o olhar atento é capaz de extrair algo como um fundamento,
e este fundamento, por sua vez, dissesse algo do seu Fundamentador, do que é
buscado em toda a experiência espiritual. Por isso, a espiritualidade, em nossa
modesta opinião, tem como fim último a busca pelo Criador e não se encerra em
um culto ao que é criado, a natureza, pois a natureza só nos possibilita uma
experiência espiritual e, portanto, transcendente, quando nos transporta de sua
irredutível impermanência para a divina permanência. Ser transportando desta
forma é experimentar o (Qui Est) de maneira radical, é, para utilizar uma
frase popular, estar na presença de Deus.
O amor, a busca pela
verdade, a busca pelo que é belo, contemporaneamente tão discutidos, são
caminhos seguros que favorecem experiências deste tipo. Ter os pés no terreno
firme e não raro hostil da experiência humana nos permite, por vezes,
experimentar a verdadeira alegria, quando a inteligência e o coração voltam-se para o que é substancial,
para o que subjaz, para o que está além do transitório.
Uma experiência espiritual,
portanto, não é como um despir-se da condição humana, é, antes, experimentar
essa condição humana em sua inteireza, de maneira radical. Em as experiências
humanas carregando em si mesmas certos valores e sentidos permanentes, só
teremos acesso a essa dimensão propriamente dita no território mesmo da vida
diária: Nos obstáculos que enfrentamos em nós mesmos, nos desafios que nos
impelem ao crescimento e, de igual modo, nas amenas situações que nos fazem
experimentar uma espécie de “sem tempo”: uma amizade bem construída, um amor
que sabe renunciar, uma verdade que se impõe e etc.
O transitório carrega
em si mesmo uma face permanente, seja um princípio ou valor e, mesmo as
situações comezinhas da experiência humana são momentos propícios e ricos em
espiritualidade. Há por vezes oculto em um ligeiro sorriso, um permanente bem
querer; em uma palavra não dita, a caridade que sabe silenciar; em uma
expressão inamistosa, a justiça sendo violada e querendo se impor; em uma
dúvida, a mais sincera busca pela verdade.
Compreender o não dito, o não expresso, é de
inteira responsabilidade nossa, é saber ter olhos profundos para as coisas e,
com isso, acessar uma dimensão da vida igualmente profunda. Ter esse olhar espiritual é, parafraseando o
Evangelho, viver como que transportado de si mesmo; é, sem sair do tempo e desde
a transparência das coisas e situações, ter acesso ao verdadeiro sabor da vida,
a alegria do evangelho, em que os mil nadas da experiência humana, que ferem
como picadas de alfinete, se transformam em outras mil e tantas oportunidades
de crescimento e renovação espiritual. Do transitório ao substancial não há um
processo alquímico e automático que o garanta, tudo é uma questão de “o que
estamos buscando” e de quais aspectos da realidade estão em consonância com os
nossos interesses. Ter olhos para ver significa contemplar, em meio a transitoriedade
do diverso, a unidade do que é substancial, é colocar-se lá mesmo no ser das
coisas, onde, como diria Bergson, a vida se realiza plenamente como em um
fluxo, em que a alegria, em seus contornos reais, é o sinal mais claro de sua
verdadeira plenificação.
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