quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A experiência humana como fonte de transcendência



“Mas abençoados são os vossos olhos, porque enxergam; e os vossos ouvidos, porque ouvem”  Mateus 13:16

Este blog assume como pressuposto que a espiritualidade genuína pode ser encontrada em toda a religião séria e que, particularidades ritualísticas à parte, propõe aos homens um modo de vida orientado por valores que, dado a sua natureza permanente, não são simples construções histórico-sociais, antes, são ontológicos, ou seja, fundamentos de todo o devir.
Toda a espiritualidade tem uma base metafísica, algo que a fundamenta de maneira forte, o que faz com que possa permanecer ao longo do tempo sem os abalos das constantes mutações históricas. Toda mudança tem um quê de permanência e, diremos ainda, que há uma dimensão de permanência sem a qual as próprias mudanças seriam inviáveis. Dito isso, iremos refletir nessa breve postagem sobre o possível lugar da experiência humana como fundamento para uma vida orientada para a transcendência.
O transcendente, em um contexto de espiritualidade, refere-se àquela dimensão que estrutura a vida, e na qual as peripécias e eventos dessa experiência humana seriam apenas meios, caminhos mais ou menos fastidiosos que teriam por fim a obtenção de uma felicidade de tipo muito superior: a experiência final de Deus. Mas, qual o possível contato com o divino, o permanente, o Qui Est ( Que É) em meio as nossas mais comezinhas experiências?  Viver a experiência do mundo, contudo, não é encarnar o espírito do mundo, e não é, de igual maneira, conforme sugere o Evangelho, se cobrir de cinzas e transpor para a face um lúgubre aspecto.
Há uma íntima relação entre o que é imanente e o transcendente. O sentido, os propósitos e desígnios se revelam através das coisas. É como se elas fossem dotadas de uma espécie de transparência, em que o olhar atento é capaz de extrair algo como um fundamento, e este fundamento, por sua vez, dissesse algo do seu Fundamentador, do que é buscado em toda a experiência espiritual. Por isso, a espiritualidade, em nossa modesta opinião, tem como fim último a busca pelo Criador e não se encerra em um culto ao que é criado, a natureza, pois a natureza só nos possibilita uma experiência espiritual e, portanto, transcendente, quando nos transporta de sua irredutível impermanência para a divina permanência. Ser transportando desta forma é experimentar o (Qui Est) de maneira radical, é, para utilizar uma frase popular, estar na presença de Deus.
O amor, a busca pela verdade, a busca pelo que é belo, contemporaneamente tão discutidos, são caminhos seguros que favorecem experiências deste tipo. Ter os pés no terreno firme e não raro hostil da experiência humana nos permite, por vezes, experimentar a verdadeira alegria, quando a inteligência e o coração voltam-se para o que é substancial, para o que subjaz, para o que está além do transitório.
Uma experiência espiritual, portanto, não é como um despir-se da condição humana, é, antes, experimentar essa condição humana em sua inteireza, de maneira radical. Em as experiências humanas carregando em si mesmas certos valores e sentidos permanentes, só teremos acesso a essa dimensão propriamente dita no território mesmo da vida diária: Nos obstáculos que enfrentamos em nós mesmos, nos desafios que nos impelem ao crescimento e, de igual modo, nas amenas situações que nos fazem experimentar uma espécie de “sem tempo”: uma amizade bem construída, um amor que sabe renunciar, uma verdade que se impõe e etc.
O transitório carrega em si mesmo uma face permanente, seja um princípio ou valor e, mesmo as situações comezinhas da experiência humana são momentos propícios e ricos em espiritualidade. Há por vezes oculto em um ligeiro sorriso, um permanente bem querer; em uma palavra não dita, a caridade que sabe silenciar; em uma expressão inamistosa, a justiça sendo violada e querendo se impor; em uma dúvida, a mais sincera busca pela verdade.
 Compreender o não dito, o não expresso, é de inteira responsabilidade nossa, é saber ter olhos profundos para as coisas e, com isso, acessar uma dimensão da vida igualmente profunda. Ter esse olhar espiritual é, parafraseando o Evangelho, viver como que transportado de si mesmo; é, sem sair do tempo e desde a transparência das coisas e situações, ter acesso ao verdadeiro sabor da vida, a alegria do evangelho, em que os mil nadas da experiência humana, que ferem como picadas de alfinete, se transformam em outras mil e tantas oportunidades de crescimento e renovação espiritual. Do transitório ao substancial não há um processo alquímico e automático que o garanta, tudo é uma questão de “o que estamos buscando” e de quais aspectos da realidade estão em consonância com os nossos interesses. Ter olhos para ver significa contemplar, em meio a transitoriedade do diverso, a unidade do que é substancial, é colocar-se lá mesmo no ser das coisas, onde, como diria Bergson, a vida se realiza plenamente como em um fluxo, em que a alegria, em seus contornos reais, é o sinal mais claro de sua verdadeira plenificação.

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