"Há ocasiões em que a predominância da vulgaridade e do ressentimento golpeia as expressões da gentileza e da dignidade, parecendo conduzir tudo e todos ao caos... nesse deserto, porém, numa caminhada silenciosa e demorada, surgem os tesouros da reflexão, do entendimento dos valores espirituais, da necessidade de ser pleno." Joana de Ângelis
Os muitos desertos que atravessamos imprimem suas profundas marcas em nossas vidas: o deserto da incompreensão com que somos analisados e julgados por outrem; o deserto do desrespeito e do não acolhimento que enfrentamos em muitos momentos da caminhada; o deserto da falta de possibilidades materiais dignas; o deserto da ignorância, devido à falta de possibilidades de acesso a cultura dignificante, entre tantos outros elementos com capacidade de supostamente limitar a nossa possibilidade de crescimento, o nosso vir- a -ser. O que parece comum a cada contexto de privação é, como em toda realidade contextual, o seu caráter eminentemente externo que, se acaba por afetar e deixar suas marcas no Ser, não tem o poder de alterar de maneira profunda o que se é.
Embora as reflexões acerca da natureza humana tenham arrefecido e mesmo desaparecido do debate contemporâneo, sobretudo em contextos leigos, dado que a preocupação principal dos intelectuais é com a macro realidade histórico-social e de como essa exterioridade criada é capaz de formar a consciência dos indivíduos, o resgate da possibilidade de um Ser cognoscente, com alguma autonomia, não sendo apenas um receptáculo de padrões externos (um quase autômato) é trazida ao debate por alguns sociólogos de linhagem interpretativa que, sem adentrar na intrincada questão metafísica correspondente, acenam, de maneira reduzida e científica, com alguma possibilidade de agência livre diante da impositiva e coagente realidade externa. A visão de que somos seres cognoscentes não apenas representa, a meu ver, uma aproximação maior da realidade, mas aponta para uma ética da responsabilidade e dos deveres individuais, tão cara nos dias atuais e sem a qual não será possível construir uma sociedade formada por indivíduos maduros e que assumam os resultados inexoráveis de suas próprias ações. Em uma ambiência religiosa, o debate assume outra configuração, de modo que o Ser, em sua formulação metafísica, é um elemento crucial na reflexão, e sobre ele uma ética profunda e estruturante, de caráter transcendental, o impele a desenvolver as potencialidades ínsitas de sua natureza perfectível, e mesmo os ambientes desérticos o favorecem nesse sentido.
Ter consciência de sua perfectibilidade e das potencialidades que sustentam e promovem, com o auxílio do tempo e dos desertos, essa mesma perfectibilidade, favorece o viajante. É como se detivesse um instrumento a lhe indicar o caminho bem como a melhor maneira de caminhar. Os desertos da vida, conforme a alegoria da mensagem, representam os contextos de carência e privação pelos quais devemos atravessar. A aridez, o solo infértil e as dificuldades da estrada não são motivos para o abandono da caminhada nem para os reclames tão comuns quanto compreensíveis. Se bem acolhida, a solidão existencial que o deserto oferece pode alterar o homem de tal modo que o conduza à reflexão. E esta, se bem orientada, pode favorecer o autoconhecimento e o encontro com a própria dignidade, que não figura nesse ambiente hostil, mas no oásis da própria alma. É da interioridade do Ser que emana a força para vencer as contingências necessárias e para não se deixar influenciar em demasia pelos desertos da vida humana, percorrendo-os a passos firmes. A dignidade humana não é um adorno que conquistamos externamente no jogo das aparências, mas uma força interior que irrompe e nos torna tudo aquilo que podemos ser nesta vida: fortes diante dos infortúnios, conhecedores de nós mesmos e, com efeito, senhores do nosso próprio destino. Estar conosco mesmo, centrados no valor de nossa própria dignidade intrínseca, são condições necessárias para a travessia e bom proveito da experiência do deserto, pois a solidão experimentada nos desertos exteriores da vida não são nada diante daquela solidão que experimentamos quando trazemos o deserto para dentro de nós mesmos, ao nos afastarmos de nossa realidade profunda, de nossa dignidade e dos nossos mais caros valores espirituais.